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quarta-feira, 23 de março de 2011

Considerações sobre a disciplinarização da infância no Brasil: menos palmadas para nossas crianças e mais escolas.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume mar., Série 24/03, 2011, p.01-10.


Há pelo menos duzentos anos, autoridades tentam redefinir o estatuto da criança.
Por volta de 1900, ela foi elevada ao papel central: amparada pela pediatria, puericultura e pedagogia, tornou-se o "reizinho da família".
Nessa mesma época, começou o combate ao trabalho infantil e ao abandono de crianças pelas ruas: coisa nada "civilizada"!

A reação oficial veio na forma da fundação de instituições de proteção à infância desamparada, assim como das primeiras escolas de ensino profissionalizante.

No início do século 20, "ser civilizado" significava tornar-se um trabalhador produtivo.
E a proteção à infância, uma forma de controlar os rebeldes e improdutivos.
Está na ordem do dia a "lei da palmada".
A sociedade reagiu: de acordo com sondagens, 54% são contra.
O governo contra atacou.
Ele, apenas, deseja que o Brasil esteja entre 30 países "civilizados", onde não existe castigo físico contra a criança e os Direitos Humanos são respeitados.
Mas acontece que a questão é mais complexa, as regras da vida coletiva estão em migalhas e a constatação é só uma: a pobreza afetiva e material de muitos não mudou.
Vivemos hoje no Brasil apenas uma continuidade, uma herança herdada desde o período colonial.



A educação ontem e hoje.
Na Colônia, Padre Anchieta já recomendava "castigar vícios, com açoites".
Para moralistas como o baiano Nuno Pereira, palmadas eram uma forma de "não deixar a perder os filhos".
No século 18, durante as Aulas Régias, embrião de escolas públicas, a palmatória era o instrumento de correção.
Seu uso perdurou até o final do século 19.
E ainda no Primeiro Congresso à Infância, realizado em 1922, havia quem defendesse o castigo corporal: "a criança ligará a idéia do bem ao que lhe é permitido, e de mal ao que lhe é vedado, e na linguagem familiar será bonita, se não desagradar, e feia no caso contrário."
Se há duzentos anos as autoridades tivessem compreendido que "civilizar-se" não era questão de castigar ou não crianças, mas de dar-lhes educação, boas escolas, professores bem formados, bem pagos e valorizados pela sociedade, não estaríamos discutindo, hoje, a "lei da palmada".


Novos ou velhos valores?
Monstro é a mãe que mata o filho.
E isto desde a noite dos tempos.
Dizem que nas penitenciárias femininas tais mulheres não podem ficar entre as demais detentas.
São maltratadas, quando não, mortas.

Tal crime é intolerável mesmo entre as mais bárbaras!

O infanticídio é imperdoável.

Como pode quem dá a luz, trazer o sono eterno?

O fato é que o gesto de tirar a vida de uma criança é velho como a História.
No século XVIII não foram poucos os manuais de confessores - livrinhos que o padre usava para se orientar na confissão dos fiéis - que recomendavam às mulheres não "afogar suas crias" na cama.
O recado era simples.
Não durmam com seus filhos para rolar sobre eles à noite, fingindo um acidente.
Outra sugestão: não deixe a criança pequena perto do fogo ou do fogão, para que se queime.
Não a deixe próxima de poços.
A lista do padre revela, contudo, o cotidiano de milhares de mulheres, de suas atribulações e das condições em que crianças indesejadas desapareciam.
Ficou famoso em São Paulo de outrora o lixão que existia ao lado do convento de Santa Teresa, na atual praça da Sé.
Não foram poucas as autoridades que, de passagem pela cidade, alojadas na instituição religiosa, descobriam, ao abrir a janela de manhã, restos de crianças entre restos de comida.
A revolta era grande.
Os sermões dominicais vinham carregados de ameaças.
Mas o silêncio também era grande e as crianças continuaram como pasto para porcos e cachorros por muito tempo.
Antigamente existia a "roda dos expostos".

O enjeitado era colocado num funil de madeira, cravado no muro da Santa Casa de Misericórdia.

A mãe tocava uma sineta e a mão da caridade recolhia a criança do outro lado. Houve aquelas que deixavam um bilhetinho.

Uma nota explicando as condições do abandono: pobreza extrema, doença dos pais, adultério.
Outras deixavam um enxoval, uma medalhinha, um nome escrito num pedaço de papel.
Eram nomes complicados: Napoleão, Heródoto, Caio Graco.
A intenção era poder recuperar, um dia, o filho de volta.
Com um nome destes, ninguém se enganaria.
Mãe e filho com nome esquisito se reencontrariam num abraço apertado.
Tinha, também, os que eram abandonados nas portas de casas de família.
Recolhidos "por amor de Deus", cresciam e se tornavam filhos de criação.
Às vezes com o mesmo carinho dos filhos de sangue.
Às vezes servindo de escravos disfarçados, pagando com serviços a vida que lhes foi poupada.
No campo, eram rapidamente inseridos na família.
Afinal, ganhava-se um braço para o trabalho na lavoura.
Isto tudo para chegar no abandono e morte de mais crianças indefesas.
Os jornais protestam.
Os radialistas se perguntam que febre é esta que transforma a mãe em monstro.
Alguns associam infanticídio e dificuldades para abortar.
Mulheres ricas - explicam - abortam no sigilo e segurança de clínicas privadas.
As pobres jogam seus filhos nos rios, lagos e outras profundezas. Discordo.
No passado, o aborto era tão difícil para ricas quanto para pobres.
Os riscos eram os mesmos: condenação social, doença e morte.
E abortos já conviviam com infanticídios.
Um não excluía o outro.
A explicação é sempre a mesma: miséria, doença dos pais, vergonha, desamor.
A diferença é que, nos tempos antigos, nossa sociedade acreditava em fazer o bem.
A caridade era parte integrante dos valores das famílias, independentemente do seu credo, origem e cor.
Tinha até a Misericórdia.
Ajudar, ser útil, dar a mão, era o bê-á-bá.
As crianças indesejadas acabavam por encontrar seu espaço em algum lar.
Uma mãe adotiva, a do coração, em algum lugar.
Hoje, ninguém tem mais tempo para isto.


Um novo conceito de família.
Depois da 2ª Guerra Mundial, o Brasil viveu um momento de ascensão da classe média.
O carro se popularizou, assim como a piscina de clubes, o cinema, as viagens.
Jovens podiam passar mais tempo juntos e a guarda dos pais baixou.
Filmes americanos seduziam brasileiros e não foram poucos os que aprenderam a beijar vendo Humphrey Bogart e Lauren Bacall, casal de amantes na vida real.
As revistas femininas tinham, então, um papel modelar no que dizia respeito à vida amorosa.
Querida, ou sessões femininas em O Cruzeiro, vendiam a idéia de que ser mãe e dona de casa era o destino natural das mulheres, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade.
Não importavam os desejos, o que contava ainda eram as aparências, pois, segundo tais revistas, "mesmo se ele se divertir, não gostará que você fuja dos padrões e fará fofoca a seu respeito na roda de amigos".
Durante os chamados Anos Dourados, aquelas que permitissem liberdades acabavam sendo dispensadas e esquecidas, pois "o rapaz não se lembrará da moça, a não ser pelas liberdades concedidas".
Mantendo a velha regra da submissão feminina, eram os homens que escolhiam e, com certeza, preferiam as recatadas, capazes de se enquadrar nos padrões da "boa moral & boa família".
O bem-estar do marido era a medida da felicidade conjugal, e esta adviria de um marido satisfeito.
E qual era a fórmula?
Seu primeiro componente eram as "prendas domésticas".
Afinal, a mulher conquistava pelo coração e prendia pelo estômago.
Brigas entre o casal?
A razão era sempre do homem.
As mulheres deveriam resignar-se, em nome da felicidade conjugal.
Nada de enfrentamentos.
O "temperamento poligâmico" dos homens justificava tudo: "mantenha-se no seu lugar, evitando a todo o custo cenas desagradáveis, que só servirão para exacerbar a paixão de seu marido pela outra."
Afinal, no entender dessas conselheiras sentimentais, "o marido sempre volta".
Entre os anos 70 e 80, a pílula anticoncepcional, a migração campo-cidade e a explosão urbana ajudaram a mudar os papéis na família.


Começou-se a discutir o desejo de multiplicidade de parceiros sexuais, e a estabilidade sexual, necessária aos filhos, o lar e a carreira.

Graças à disseminação da pílula, as mulheres conquistaram espaço no mercado de trabalho.

Os álbuns de família ganharam novos atores: madrastas, padrastos, meio-irmãos e produções independentes.
Segundo cálculos do IBGE, na última década, 47% dos domicílios tiveram pais ausentes.
Muitos desses, caracterizam-se por ligações consensuais temporárias.
Os avós têm novo papel: criar e educar os netos, repartindo com pais biológicos responsabilidades, inclusive financeiras.
Os divórcios triplicam-se e há uma diminuição de 12% nos casamentos.
Uma mudança importante se dá para as minorias: os homossexuais começam a sair do armário.
É o começo do fim de uma sociedade que produzia sofrimento, graças ao jogo da repressão, do interdito, da miséria sexual.
O destino individual se sobrepõe ao familiar ou coletivo.
Condições econômicas, o crescimento da vida urbana e do individualismo autorizam tal transformação.
Começa a caminhada para uma nova definição de casal: "ser livre junto."
Para melhorar o quadro geral, o Viagra aterrissa aqui com estardalhaço.

Põe fim às dolorosas injeções, bombas a vácuo e simpatias curativas, usadas para afastar o medo de falhar.


Se até então a vergonha cobria o assunto, o tema passa a invadir a mídia.
Para a família, o aumento da participação feminina no mercado trouxe pelo menos duas mudanças: o homem perdeu o status de único provedor; a mulher, a resignação.
À medida em que ela se tornou financeiramente mais independente, ficou menos disposta a suportar uniões infelizes.
Agora parece buscar, sobretudo, qualidade na vida a dois.
Nas últimas décadas teve início um outro movimento, fruto de séculos de transformações: o que procurou separar a sexualidade, o casamento e o amor.
Foi o momento de transição - muito lenta - entre o amor idílico dos avós para a sexualidade obrigatória, dos netos.
Ninguém mais se casa, sem "se experimentar"; jovens consideradas por seus parceiros "frígidas" são descartadas dos jogos amorosos; as mulheres começam a falar sobre orgasmo.
O domínio da reprodução, graças à pílula, vai consolidar essa liberação.
A ciência vai se impondo sobre a idéia de pecado sexual.
As coisas mudaram.
Apesar dos riscos da AIDS, a sexualidade desembaraçou-se da mão da Igreja, separada da procriação, graças aos progressos médicos.
E mais: foi desculpabilizada pela psicanálise, e mesmo exaltada. Hoje, a grande ausência de desejo é que é culpada.
O casamento de papel passado não é mais obrigatório e escapa às estratégias religiosas ou familiares; o divórcio não é mais vergonhoso e os casais têm o mesmo tratamento perante à lei.
A realização pessoal coloca-se acima de tudo.
Mas tudo isso são conquistas ou armadilhas?
Os historiadores de amanhã o dirão.


Concluindo.
Na passagem para o século XX, nos colégios e instituições disciplinares, começou-se a discutir a substituição da disciplina violenta por aquela "inteligente", preocupada em construir cidadãos modernos.
Até o século XIX, a idéia era moldar o caráter, e não o físico infantil.
Lentamente, aposentou-se a palmatória e o banco do desprezo - onde se sentavam com letreiros os vadios, comilões e desordeiros.

Mas como fazer "cidadãos modernos" dentro de casa?


Ali, todas as crianças eram educadas sob "rédeas curtas" e a obediência era norma.
No caso de transgressão, castigos eram considerados normais.
Buscava-se imprimir nos pequenos um comportamento adulto - sobretudo entre pequenos trabalhadores do campo e das cidades.
Os pais não castigavam por maldade ou pelo prazer de cometer violências.
Havia, sim, uma preocupação pedagógica: era necessário fazer a criança ter responsabilidades.
"O castigo era para o seu bem", "para aprender a ser gente".
Tais expressões justificavam o processo de disciplinarização, usado para mantê-la dentro dos códigos de boa conduta e da ambicionada imagem de "civilidade".
Ora, o castigo pedagógico era uma tradição.
No entanto, diante da individualização afetiva, do narcisismo que conduz ao retorno do desapego afetivo dos pais para com os filhos, das novas definições de família, nem sempre bem delineadas; como manter esta tradição?
Existem boas razões para sustentar o direito dos pais em aplicar umas palmadinhas.
Simultaneamente há motivos de sobra para que a preocupação com possíveis excessos se justifique, diante de casos e mais casos de violências e assassinatos cometidos por familiares daqueles que, em tenra idade, não possuem ainda a capacidade de se defender sozinhos.
Menos palmada? Sim. Mas, sobretudo, mais e melhores escolas, por favor.


Para saber mais sobre o assunto.
DEL PRIORE, Mary. A Família no Brasil Colonial. São Paulo: Editora Moderna, 1999.
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo, Condição Feminina, Maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. UNESP: São Paulo, 2009.
DEL PRIORE, Mary. “A vida cotidiana no Rio de Janeiro” In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 436, 2007, p. 313-333.
DEL PRIORE, Mary. A História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.
DEL PRIORE, Mary. “Crianças e adolescentes de ontem e de hoje “ In: Helena Bocayuva e Sílvia A. Nunes. (Org.). Juventude, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p.11-24.
DEL PRIORE, Mary. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2002.
DEL PRIORE, Mary. L'Histoire de la vie privée dans le monde luso-americain: l'exercice d'une nouvelle approche? In : Cahiers de L'histoire Du Brésil, Sorbonne - Paris, 2000.



Texto: Profa. Dra. Mary Del Priore.
Doutora em História Social pela USP, com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris/França).
Lecionou História do Brasil Colonial nos Departamentos de História da USP e da PUC/RJ.
Autora de mais de cinqüenta livros e atualmente professora do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO/NITERÓI.
Membro do Conselho Editorial de "Para entender a história..." desde 14/01/2011.

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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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